domingo, 20 de setembro de 2009

No ar

Maquiagem ok. Luz ok. Câmera ok. A luz vermelha acende. No ar.
A apresentadora inicia: “Hoje em nosso programa um caso de traição em família. A mulher desconfia que seu marido a traiu com a irmã. Aqui em nosso estúdio o marido Wesley, a mulher Rosalina e sua irmã Leocádia”.
A apresentadora pede para que cada um conte sua versão. E anuncia: “no próximo bloco Wesley vai encara a máquina da verdade”.
Intervalo.
A máquina desenvolvida nos confins da Estônia mede o tom da voz do sujeito, se detectar um tom inseguro é considerada mentira. A true-machine é controlada por um psicólogo de renome internacional.
Wesley passa pela máquina. Sua sinceridade é de impressionar até mesmo a experiente apresentadora. Suas opiniões sobre a fidelidade são contundentes. “Olha Rosalina, só pelo que esse homem disse até agora e que a máquina constatou ser verdade, por mim já é suficiente para que você largue ele”.
A platéia, que em sua totalidade é feminina, aplaude. Ela aproveita: “isso inclusive está presente no meu livro mais recente...”.
E agora vamos para a pergunta final: “Wesley, você traiu sua mulher com a sua cunhada?”. Ele respira fundo, e quando vai responder...”antes disso o Carlos tem um aviso para nós”. O anunciante faz sua parte e o programa retorna.
Então agora vamos à pergunta decisiva: “Wesley, você teve um caso com sua cunhada Leocádia?”. Ele responde com convicção de maneira negativa. “E agora vamos ao veredicto da máquina. Ele disse que não traiu Rosalina com sua irmã, e para a máquina... mentiu”.
Rosalina leva as mãos ao rosto. Wesley faz cara de desentendido, como se fosse um absurdo o resultado. Leocádia faz cara de indiferente.
“Olha Rosalina eu já tinha dito antes pra você largar dele. Agora então se você continuar com ele significa que você gosta de ser enganada. E aí Rosalina, você vai continuar com esta mentira que é o seu casamento?”. Leocádia mal consegue falar de tanto chorar. Resmungando diz que jamais vai olhar na cara do marido.
A psicóloga presente avalia o caso de acordo com sua especialidade e faz uma explanação sobre a insegurança feminina.
A apresentadora anuncia a próxima atração da programação e fim.
Os auxiliares vêm tirar os microfones. A apresentadora vai conversar com a psicóloga.
A equipe de produção encaminha cada um dos envolvidos no caso para um lado. Cada van leva para casa um dos personagens da história daquele dia.
Rosalina chega em casa primeiro e fica pensando no ocorrido. Wesley chega um pouco depois.
Ele entra e os dois trocam olhares. Ela começa o diálogo:
- Então Wesley, cê num tem nada pra me falar?
- Desculpa Rosa. Desculpa.
Ele se ajoelha e junta as mãos.
- Levanta daí hôme. Fez e agora fica aí chorando.
Ele levanta e a dá um apertado abraço. Ela continua com os braços para baixo. Passados cinco minutos ele fala:
- Desculpa Rosa. Eu amo você. Vamos voltar como era antes.
Ela também o abraça forte. Dá-lhe um longo beijo e diz:
- Eu também te amo meu marido.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O homem cachorro

O sol batendo no rosto não foi suficiente acordar. Foram necessários vários cutucões da dona da mercearia na frente da qual dormia para abrir o olho.
Levantou, pegou a garrafa de caçacha (vazia), seu cobertor e o resto das coisas.
- Bom dia Dona Lurdes. Desculpa não levantar a hora que a senhora abriu.
- Tudo bem Edgar. Sem problemas.
- Tem um pãozinho sobrando aí Dona Lurdes?
- Hoje não tem.
- Tá bom. Brigado.
Queria continuar a dormir, mas como não tinha mais lugar para se deitar teve que vagar. Já dormiu em frente a quase todas as casas da região.
No bolso 2 R$. Insuficiente para uma refeição, mas na medida para uma garrafa de plástico de pinga. Era cedo para isso.
Era hora de comer, depois de muito vagar ficou em frente ao restaurante. Observava toda aquela gente comer. Ele e um cachorro ao seu lado. Depois do último cliente deixar o local ele se aproxima. Fica esperando na entrada. Quando o dono vem fechar o portão ele pergunta:
- Ô patrão, sobrou um pratinho de comidaê?
- Sobrar até que sobrou, mas não posso te dar se não suja pra mim.
- Beleza.
Saiu de lá e ficou conversando com o cachorro ao seu lado. Imaginou que seria muito melhor passar mal com a comida a passar fome. Na próxima vez faria um trato com o dono do restaurante, caso passasse mal não contaria a ninguém. Mas enquanto isso a fome continuava.
Se comece algo que não fosse uma refeição, como um salgado, ficaria com mais fome ainda. A solução seria amenizar com um cigarro.
Mas não adiantava pedir para qualquer um. Geralmente as pessoas fingiam que não o viam. Ele vai até a rua onde os piás do bairro andavam de skate. Pede cigarro a um deles, que reluta mais lhe cede um.
Caminha um pouco e senta para fumar. Enquanto fuma pensa na ex-casa. Bate uma saudade da sua mãe. Morava com ela e os três irmãos. Já era alcoólatra. Quando a mãe faleceu seus irmãos o expulsaram.
O cigarro acaba. Guarda a bituca. Volta a vagar. Fica um tempo em frente à igreja. Dá muitas risadas da gritaria vinda de lá.
Quando chega às 7 horas fica em frente à panificadora. Nesse horário todos saem do trabalho e passam ali para comprar pão. Vai que dá sorte e lhe dão alguma coisa para comer. Não foi dessa vez.
Tá na hora. Vai até a distribuidora e compra cachaça. Bebe devagar. Bate forte na barriga vazia. Senta-se com o cachorro.
Com o calar da noite mais cachorros surgem, se aproximam e ali ficam. Quando acaba a cachaça ele apóia a cabeça no joelho e dorme.
Ele cai ali junto aos cães.
Acordou no outro dia sem ninguém o tocar de onde estava. Quando começou a caminhar ninguém o olhava com ar de descriminação. Parou em frente ao mercado e lambeu as patas. Percebeu então que tinha virado um cachorro.
Foi até a mercearia onde dormiu na noite passada. Dona Lurdes estava abrindo. Viu o cachorro ali. Abaixou-se e ficou um bom tempo fazendo carinho. Ele abanou o rabo. “Espera só um pouco que tenho uma coisa pra você”.
Ela entrou na mercearia e voltou com algo na mão. Edgar enfim ganhou um prato de comida.


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Desculpem-me os poucos, mas fiéis leitores pela demora ao atualizar. Estive passando férias na Argentina. Essa vida de desempregado às vezes pede férias.